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  • Foto do escritorGiovanni Alves


Realizamos a filmagem dos depoimentos dos jovens operários da Mercedes-Benz de São Bernardo do Campo em plena jornada de julho de 2013. Naquela época, eu e Thayse Palmela visitamos a fábrica da montadora em São Bernardo do Campo no ABC paulista e fizemos o registro audiovisual que se transformou no documentário “Sonhos do ABC”. Em 2013, eu concluí a pesquisa com bolsa-produtividade do CNPq intitulada "A derrelição de Ícaro - Sonhos, expectativas e aspirações de jovens empregados do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil (2003-2013)”. Tinha lançado também o livro “Dimensões da Precarização do Trabalho - Ensaios de sociologia do trabalho” (Bauru: Práxis, 2013). Em abril de 2013, às vésperas das jornadas de julho, dei uma entrevista para o IHU On-line com título “Ser-mercadoria num momento histórico de crise radical da forma-mercadoria”.


Na verdade, o ano de 2013 foi deveras prolífico em reflexões críticas e um ano de inflexão histórica pois naquele ano manifestavam-se os limites do neodesenvolvimentismo lulista e vislumbra-se os elementos da tragédia brasileira que tiveram como resultado o golpe de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Obviamente, só pudemos perceber isso quase 10 anos depois, pois é assim que acontece com o processo histórico.


Em 2013 escrevi vários artigos no blog da Boitempo organizados em livro em 2023 pelo Projeto editorial Praxis: “Capitalismo à deriva: a era do sociometabolismo da barbárie”. Foi neste mês de julho de 2013 que escrevi o ensaio sobre a revolta do precariado, dando uma nova significação para o conceito utilizado por Guy Standing e Ruy Braga. Para mim, o ponto de disputa era a juventude proletária. Naquela época, meu foco era compreender a juventude brasileira no que diz respeito a sua consciência contingente.


Desde 2012, tinha produzido outros documentários sobre jovens trabalhadores e trabalhadoras abordando a problemática do precariado, jovens precários altamente escolarizados. Por exemplo, produzi os documentários “Galera” e “Metalúrgicos”, lançado também em 2013; e “Precários Inflexíveis”, lançado em 2012 quando fiz pós-doutorado na Universidade de Coimbra (Portugal) com o tema da “derrilição de Ícaro”. Mais tarde, continuei abordando nos meus documentários a problemática da juventude precária – ver o Canal do CineTrabalho.


Diz o letreiro inicial do documentário:


“O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista possui em sua base muitos jovens operários que trabalham nas montadoras da indústria automotiva. Os jovens metalúrgicos encontram nas montadoras um emprego que lhes garante uma boa oportunidade de cidadania salarial. Este documentário apresenta as preocupações e os sonhos contingentes de jovens operários metalúrgicos de uma grande montadora do ABC paulista”.


Dividi o documentário com os jovens operários e operárias da montadora da Mercedes-Bens em 3 partes: Preocupações, Sonhos e Ser metalúrgicos.


Já percebíamos por meio do documentário, a inquietação da juventude operária naquela época, cheia de anseios, sonhos e expectativas com respeito às possibilidades do futuro, mas também cheias de preocupações com a violência, drogas, insegurança, falta de respeito, ambição, ganancia e egoísmo (pessoas que só pensando em si mesmas). Eram elementos da crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de autoreferencia pessoal por conta da exacerbação do fetichismo da mercadoria no metabolismo social, temas discutidos no livro "As dimensões da precarização do trabalho".


O choque de capitalismo da era do neodesenvolvimentismo só exacerbou o fetichismo da mercadoria e degradou a sociabilidade por conta do sociometabolismo da barbárie. A hegemonia neoliberal ampliou-se e intensificou-se nos governos Lula e Dilma (2003-2014). A maior parte das questões levantadas pelos jovens estão no âmbito da moralidade. Talvez porque a maior parte deles são jovens de fé cristã ou neopentecostal - dois depoentes disseram identificar-se como sendo da Igreja Quadrangular e da Igreja Batista. Não deixa de ser sintomático que a ascensão do neopentecostalismo no Brasil ocorra na era do capitalismo neoliberal - a partir da década de 1990.


Pelos depoimentos, percebemos o valor de ter um emprego estável numa grande empresa multinacional como a montadora Mercedes-Benz. Ter carteira assinada numa multinacional propicia oportunidade para estudar, ter as coisas, enfim, realizar os sonhos. Aqueles que estão numa condição precária estão alienado da experiência expectante, o “sonhar”.


Os operários metalúrgicos dizem querer ter família, sendo isto um valor fundamental para os jovens operários. O sonho de ter uma família estruturada é importante num país em que a miséria do sobrevivencialismo, a desigualdade social e a superexploração do trabalho tem produzido historicamente famílias desestruturadas. .


A cidadania salarial propicia aos jovens metalúrgicos o saber do “valor do dinheiro” – como eles dizem. Ao terem a cidadania salarial e um salário digno, eles tem condições para reconhecer o valor da sua própria força de trabalho. O salário é um elemento histórico-moral importante para a formação da consciência contingente do trabalho vivo. Ao degradar a condição salarial, o capital aliena dos trabalhadores a possibilidade de saberem de fato, “o valor do dinheiro” – que é o valor da força de trabalho deles.


Num dos depoimentos, um jovem operário se preocupa com o futuro do Brasil. Em 2013, o neodesenvolvimentismo estava no auge. Mas o jovem constatou a crise de formação de profissionais. Isto significa atentar contra a segurança no futuro, pois – por exemplo - um país sem Médicos e Professores formados com qualidade – é um país-sem-futuro. Profissionais com formação “meia-boca” - como disse ele - fazem com que os serviços se degradem, principalmente os serviços de saúde. A preocupação do jovem operário não é casual. Os limites do neodesenvolvimentismo se manifestam com clareza nesta preocupação do jovem metalúrgico quando o choque de capitalismo, a disseminação dos valores de mercado, degradou as profissões no sentido ético-moral.


Ao falar de sonhos, manifestam-se na fala dos metalúrgicos, anseios, expectativas e utopias de mercado. Eles pertencem à geração neoliberal. A força da ideologia (os valores-fetiches de mercado) faz com que a jovem montadora sonhe querer ter uma carreira de gestora. Talvez por isso faça Administração na Faculdade.


Na verdade, a cidadania salarial que salientamos acima, tende a alimentar ilusões da ordem capitalista. Isto é bastante visível na era do neoliberalismo quando a juventude trabalhadora se impregna dos valores neoliberais. No livro “Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório” (de 2011) analisei que a "captura" da subjetividade é operada pela introjeção de valores-fetiches do capital.


Nos depoimentos, os sonhos de realização individual são predominantes. Apesar de reconhecerem o valor do coletivo – como iremos ver adiante – o que orienta o discurso é a realização pessoal ou a força de cada-um-por-si-mesmo. Um diz não querer "ser apenas um número" – quer ser alguém importante que faça a diferença, não ter dividas e sonha comprar imóveis. Outro diz querer ser lembrado ser lembrado (como Lula). Diz querer "fazer parte da história" – ... da história da empresa. Eis a hegemonia neoliberal: “Ela – a empresa – está no mercado até hoje, porque eu fiz parte dela”. Ressalta: eu ajudei a empresa a alcançar os resultados.


Levando às ultimas consequências o raciocínio ideológico, o operário encontra um ardil quase-absurdo para contornar a alienação do trabalho (a falta de sentido da atividade do operário), quando observou que a sua atividade tem um sentido [sic] pois ele “ [...] monta o eixo [que é uma peça] muito importante para o caminhão”. Fica a questão: ele acredita mesmo nisso?


Mas logo a seguir o jovem operário diz querer "ter a presença de Deus na vida" e pretende ter família, almejando alcançar “tudo aquilo que coloquei como Meta um dia”. Enfim, o foco na família, a celebração dos esforços, a expectativa de ascensão social pelos estudos - uma série de expressões de sonhos alienados que habitam a subjetividade dos jovens operários do ABC.


Outro jovem montador da Mercedes, cometeu um curioso lapso. Diz: “Eu me sonho...”. Não é ele que sonha, mas é o sonho que sonha ele.


Este mesmo operário diz sonhar ter uma renda extra, conseguir aposentar-se mais cedo, morar num sitio, criar animais e plantas: “Eu vou produzir o que vou consumir”. É 0 mesmo operário que ressaltou a importância do jovem pensar na “parte política”, o “assunto democrático”. Dos operários entrevistados, ele é o que faz a crítica do gestor. Diz ele que “o antigo chefe virou o gestor”, que age “com cautela”, “de mansinho”, e de repente, eles “passam a Meta”...isso [o processo de gestão] tende a piorar mais. Ele percebe que "os gestores vão ganhar mais espaço". E expressa seu temor em perder os direitos trabalhistas. Enfim, este jovem operário - atípico - percebe o avanço da hegemonia neoliberal na fábrica. Faz referencia ao filme "Matrix" como sendo um filme filosófico que fala do nosso tempo em que “os grandes manipulam os pequenos”.

Um operário diz ter sido lesionado nos ombros na linha de montagem. É uma observação rápida, quase imperceptível onde ele diz ter problemas de ombro. A manifestação da precarização do trabalho na forma do adoecimento do corpo e da mente, de repente, aparece na fala dos jovens operários.


A última seção de depoimentos é sobre “Ser metalúrgico”. Dizem ser uma profissão honrada pois percebe-se a união das pessoas, o trabalho em grupo, o coletivo. Neste momento, aparece o reconhecimento do ser (coletivo) metalúrgico. Na verdade, o coletivo de metalúrgicos da Mercedes-Benz é o exemplo mais desenvolvido do sindicalismo brasileiro com representação atuante no chão de fábrica (como é o caso da Comissão de Fábrica da Mercedes-Benz). Eles reconhecem que isso diz respeito a um passado de lutas, reivindicações – “sem isso, muitas coisas que nós temos hoje não existiriam”.


Eles tem orgulho da consciência de classe, mas também tem orgulho da empresa. Começam falando da história de lutas de classe, mas depois, concluem agradecendo a empresa. Reconhecem o valor de ter uma fonte de renda e trabalho estável, “ter responsabilidade de gente grande”, poder estudar, comprar um carro: “A empresa me deu oportunidade de fazer Faculdade”. Afirmam o imediato: “O salário que tenho na empresa permitiu a eles comprar muitas coisas sem depender dos outros”. Eis o sentido ideológico da cidadania salarial.


Concluimos o documentário, agradecendo de modo especial à Comissão de Fábrica da Mercedes-Benz e ao Dr. Theo de Oliveira, médico do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, mas principalmente aos jovens metalúrgicos que se dispuseram a dar depoimento para este documentário. As filmagens – com apoio técnico de Thayse Palmela – foi realizado na cidade de São Bernardo do Campo em junho de 2013.

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