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  • Foto do escritorGiovanni Alves

O depoimento do ex-operário da Ford Ipiranga (SP), Edvaldo Fernandes Deniz, foi coletado por mim numa sessão de depoimentos do mundo do trabalho feita na sala Multi-uso da FFC/Unesp-Marília(SP) em 25 de maio de 2001. Fizemos também a coletada de depoimento do operário Geraldo, da Mercedes-Benz em São Bernardo (SP).


Na época, não havia ainda o Projeto Cinetrabalho, nem a Rede de Estudos do Trabalho (RET). Mas tínhamos realizado a primeira edição do Seminário do Trabalho, evento tradicional da FFC/UNESP - Marília durante pouco mais de vinte anos (2001-2022). Inclusive a sessão de depoimentos do mundo do trabalho foi uma atividade do Seminário do Trabalho. Portanto, o ano de 2001 marcou o início da caminhada do projeto de uma Rede de Estudos do Trabalho.


Diz o letreiro do videodocumentário:

Edvaldo, ex-operário metalúrgico da Ford Ipiranga narra sua história de vida e história do trabalho, expondo o cotidiano da linha de montagem, as inovações tecnológicas e organizacionais e a superexploração da força de trabalho na fábrica de caminhões da Ford em São Paulo de 1986 a 2000.


A fábrica da Ford Ipiranga em São Paulo foi fechado em 2000. Edvaldo entrou num pacote de demissão voluntária da Ford em 1997.


Por conta do contato de Edvaldo com a Comissão de Fábrica da Ford, visitei a fábrica no ano de 2000, pouco antes dela ser fechada. Foi a primeira vez que entrei numa fábrica para ver em in loco o local da produção do capital (outras vezes foi em 2012 na Fábrica da AutoEuropa, em Portugal e depois, na Fábrica de caminhões da Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo). Depois, Edvaldo doou à RET, documentos históricos da Comissão de Fábrica da Ford, sob a direção politica na época, da CUT pela Base (que fazia oposição à direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo na década de 1980 e 1990).


O vídeo-documentário “Edvaldo, ex-metalúrgico” é um dos mais ricos depoimentos do mundo do trabalho registrado por mim. A qualidade do relato se deve à perspicácia e lucidez do entrevistado que soube expor, de forma sintética, o surgimento e os elementos compositivos – no plano organizacional - da nova fábrica toyotizada no Brasil.


Enquanto o documentário “Paquetá, o bancário” nos trouxe o relato da metamorfose do processo de trabalho nos bancos na década de 1990, o documentário “Edvaldo, ex-metalúrgico” expõe as metamorfoses da fábrica fordista na década neoliberal.


Bancários e metalúrgicos foram as duas principais categorias assalariadas mais organizadas no Brasil que contribuíram para a fundação e crescimento da CUT (Central Única dos Trabalhadores) na década de 1980. Foram dos bancários e metalúrgicos que saíram as maiores lideranças sindicais e politicas da classe trabalhadora brasileira. Ao mesmo tempo, elas foram o principal alvo da reestruturação produtiva do capital nas décadas de 1980 e 1990, que criou, a partir da fábrica, a hegemonia neoliberal das décadas seguintes.


Edvaldo é um personagem típico da odisséia da proletariedade industrial no Brasil


Como milhões de operários e operárias que foram explorados pelo capital nas fábricas – indústria metalúrgica, montadoras, construção civil, comércio e serviços em São Paulo e no pólo industrial do ABC paulista nas décadas de 1970 e 1980, Edvaldo é filho de pais imigrantes nordestinos que saindo da lavoura de café (Garça, 1968) acabou indo morar em São Paulo (1973).


Edvaldo fez a migração do campo para a cidade, do trabalho num sitio para o trabalho no comércio – primeiro, supermercado (1974), depois, vendedor da Kellog´s (1978) dirigindo caminhão; e inclusive, operário de manutenção dos elevadores Otis. Foi vítima do desemprego de 1983 a 1986. Naquela época, o Brasil sob intervenção do FMI, amargava a recessão.


Em 13 de janeiro de 1986 – com 26 anos - entrou na Ford Ipiranga. Ao mesmo tempo, tomou a decisão de estudar, fazendo o curso colegial e o curso de técnico em publicidade, apesar das restrições da Ford que queria que ele fizesse o turno da noite. Entrou em conflito cm o Supervisor. Mas venceu. Audaz e persistente, Edvaldo resistiu e conseguiu adequar o horário de estudos com o horário de trabalho.

Tendo concluído o curso de publicidade, Edvaldo foi convidado pela direção da fábrica a fazer um estágio na Ford montando a campanha publicitária para os operários sobre os CCQ´s (Círculos de Controle de Qualidade). Eis o primeiro indicio de que o toyotismo restrito avançava na década de 1980 (utilizei o termos “toyotismo restrito” e “toyotismo sistêmico” no livro – minha tese de doutorado - “O novo e precário mundo do trabalho: Reestruturação produtiva e sindicalismo no Brasil”, publicado pela Boitempo em 2000).


Mas, ao mesmo tempo, Edvaldo participou na Praia Grande (SP), de um seminário sobre o CCQ organizado pela Comissão de Fábrica da Ford Ipiranga, ligada á CUT pela Base. Eis a diferença – o que não temos hoje: o sindicalismo metalúrgico daquela época fazendo a contra-ofensiva ideológica do capital, desmontando o discurso do toyotismo.


Edvaldo dá um depoimento interessante sobre a experiencia de estar numa linha de montagem e seus impactos na subjetividade (corpo e mente) do operário. A rotina do dia-a-dia, o trabalho extenuante que deixa marcas no corpo (bolhas nas mãos, excesso de suor, etc) e na mente (a linha de montagem invade o subconsciente). O alcoolismo na fábrica – operários que tomam pinga no almoço para suportar o trabalho desgastante da linha de montagem.


Edvaldo nos fala também da superexploração do trabalho. As longas horas de trabalho na fábrica (horas-extras), algumas vezes contidas pela ação sindical da Comissão de Fábrica (criada no começo da década de 1980). Mas Edvaldo faz uma observação curiosa: depois de cada greve, a submissão dos operários tornava-se muito maior. Depois ter conquistado, por exemplo, uma melhoria salarial, a empresa passava a cobrar mais do operário, que tendo a sensação de culpa, submetia-se ao ditames da empresa (um comportamento similar ocorreu, por exemplo, na pandemia de 2020: servidores públicos que foram trabalhar em home-office para proteger-se do vírus, eram obrigados a trabalhar mais pelas chefias... porque estavam trabalhando. em casa – e muitos sentindo-se culpados, se renderam à ordem absurda. Isso acontece com várias categorias de assalariados que lutando e conquistando melhorias salariais, são punidos pelo capital, trabalhando após a greve, mais do que antes).


Edvaldo observou que a máquina quano entra, elimina 2 ou 3 postos de trabalho "e você fica fazendo mais trabalho do que fazia antes.” E fica mais cansado física e mentalmente. Deste modo, a linha de montagem, diz ele, faz o operário "ficar mais submisso". Na linha de montagem, o operário não tem tempo sequer para olhar dos lados. Eis o fordismo toyotizado praticado pela Ford caminhões no Brasil. Com o fordismo diz Edvaldo, o operário era “o papagaio com o pé amarrado”. No toyotismo, o operário tornou-se “o papagaio com as asas cortadas”...mas o pé estava livre. Enfim, o toyotismo criou a ilusão de liberdade pois o capital “capturou” a subjetividade...

Mas o mais interessante são os comentários de Edvaldo sobre os vários aspectos do toyotismo enquanto um conjunto de inovações predominantemente organizacionais na produção do capital (o CEP ou Controle Estatístico da Produção, a Qualidade Total, Plano Sugestão, just-in-time, kanban, kaizen). Tais inovações oriundas do Japão se intensificam em fins da década de 1980 e alcançam seu ápice na década de 1990. Edvaldo fazendo referencia à Qualidade Total diz-nos: “O importante para eles era a produção e não a qualidade do produto”.


Edvaldo nos fala-nos das Metas e Banco de Horas. Ele ficava intrigado com o fato de que mesmo os operários devendo muitas horas para a empresa, produziam a mesma quantidade que antes. A maioria dos operários – disse ele – não tem noção do que está acontecendo.


Em meados da década de 1990, a Ford criou o Programa de Demissão Voluntária (o Voluntariado). Passou a haver uma pressão para que os operários com baixa produtividade – isto é, com avaliação mais baixa – pedissem demissão, entrando no PDV. A empresa passou a eliminar gradativamente os postos de trabalho – tanto de mensalistas e horistas.


No começo da década de 1990, a Ford caminhões passou a extinguir as chefias intermediárias ou as médias chefias. Esta foi a prática do downsizing que caracterizou a reestruturação organizacional do capital no começo da disseminação do toyotismo. Surgiu um novo tipo de encarregado, com outra mentalidade diferente do velho supervisor capataz do fordismo. Foram eliminados vários cargos de gerentes. Todo o processo de reestruturação produtiva ocorria de modo silencioso. Os operários nem percebiam.


O toyotismo implica uma “fábrica enxuta”, isto é, uma empresa flexível, fluida e difusa – no caso da difusa, a fábrica sem estoques em torno da qual organiza-se uma cadeia de subcontratações, terceirizações...Edvaldo observa que “felizes foram aqueles que foram embora”, pois os que ficaram passaram a ter mais problemas de saúde, que aumentaram de 1997 a 2000.


A Ford caminhões ocultou de todos o plano de fechar a fábrica. Nem a Comissão de Fábrica foi informada.

A “captura” da subjetividade sindical teve uma escalada a partir de 1990. Edvaldo observou que lideranças sindicais metalúrgicas de base foram convidados a visitarem os EUA – por exemplo – e verem o que estava acontecendo em Detroit. A Ford pagou viagens para sindicalistas. Foi um modo de corrupção ideológica. Foi deste modo que se elaborou o novo propositivismo sindical da CUT. A ideologia da flexibilidade – tal como a ideologia da globalização - foi vendida como sendo o destino inexorável a que todos deviam se submeter. There is no Alternative – dizia Margaret Thatcher. Portanto, o sindicalismo da Ford que fizesse greves e enfrentasse o capital, não se adaptando aos novos tempos do globalismo neoliberal, iria ter o mesmo destino da Ford de Detroit: foi fechada. Operários – eles próprios – passaram a condenar o ativismo da greve. Isto é a "captura" da subjetividade operária


O depoimento de Edvaldo Fernandes Deniz tem a força da experiencia vivida que nos mostra o que de fato foi a poderosa ofensiva do capital na produção – por meio do toyotismo e a “captura” da subjetividade – que articulada organicamente com a ofensiva neoliberal, destruiu – objetivo e subjetivamente - a classe operária brasileira.


O toyotismo diz respeito à ofensiva do capital global na produção, enquanto o neoliberalismo diz respeito à ofensiva do capital global na economia, política e cultura. A hegemonia do capital global nasceu na fábrica e articulou-se organicamente com o movimento voraz da manipulação (hegemonia) do capital na economia, politica e cultura. Tais esferas da vida social estão interconectados e não podemos entender a formação do Estado neoliberal (sociedade politica e sociedade civil) sem perceber o todo concreto do movimento voraz do capital.


Depois de sair da Ford, Edvaldo mudou-se da capital para o interior do Estado de São Paulo, onde atuou um tempo como taxista. Continuou estudando e tornou-se Assistente Social, fazendo concurso para tornar-se funcionário público. Foi trabalhar como Assistente Social em Presídios da região.


Faz tempo que não o vejo ou tenho noticias dele. Na década de 2000 chegou a aparecer em alguns Seminários do Trabalho, acompanhando palestras e aulas dadas por mim. Como disse, Edvaldo é um personagem típico da odisseia da proletariedade brasileira – ou melhor, da classe operária industrial brasileira. De metalúrgico a funcionário público precário; da capital para o interior do Estado. Uma inteligência vivaz e criativa, desvalorizada pelo capitalismo neoliberal, a forma decadente, rentista-parasitário do capital global.


Eis no que o Brasil industrializado se tornou.

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